Exposição Sanagê Pele e Osso
A história é impecável e não permite que os fatos e casos sejam ocultados. Enquanto o tempo não faz o seu papel de resgate e compromisso com a verdade no nosso caso, o caminho a ser trilhado é tão grande e tortuoso, que a esperança de dias melhores é um legado reservado as futuras gerações. Retiro-me às questões oblíquas do processo e sistema racial, destacadamente, no Brasil.
Quando nos referimos ao racismo, estamos sempre imbuídos em destacar questões que o cenário educacional nos apresenta mormente de forma fantasiosa. A literatura escolar, sobre a importância e o legado da cultura negra, além de tendenciosa, é extremamente fraca e sem conteúdo, deixando nítido seu gesto marginal, ou seja, estamos recebendo invariavelmente um legado pobre que não permite uma interpretação isenta e analítica dos momentos.
“Sanagê Pele e Osso” busca, de forma tímida, porém consistente, despertar alguns desses fatos e momentos, trazendo luz a algumas questões que possam motivar a releitura de aspectos históricos importantes, considerando que nada é definitivo. Esta exposição é uma fagulha nesta proposta e entendimento da questão.
Paralelamente ao que as escolas nos ensinam, historiadores, sociólogos e demais interessados pela causa têm se empenhado pela causa têm se empenhado em nos mostrar verdades ocultas. Em “Nas Costas Africanas – Uma História do Tráfego de Escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX)”. Manolo Florentino traz uma grande contribuição para a historiografia brasileira, resultado de uma pesquisa sobre o tráfico atlântico de escravos. Este livro retorna a expectativa economia e social para entender os complexos processos históricos brasileiros e atlânticos.
Utilizando-se de vasta fonte documental, como listagens dos navios negreiros, testamentos e registros eclesiásticos, propõe uma instigante análise do tráfico de africanos para o Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX, oferecendo novos elementos para compreender a migração compulsória, que, por mais de três séculos, representou uma das bases de formação histórica brasileira.
Por outro lado, temos em “Retrato em Branco e Negro – Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX; de Lilia Moritz Schwarcz, um retrato de como a imprensa paulistana, com reflexo nas demais capitais, tratava a questão do negro. As conclusões jornalísticas não se limitavam a mostrar cartas de alforria, nem declarações de fugas, porque o que tínhamos como pano de fundo destas notícias e/ou informações eram aflições e uma carga social topográfica. Assim, destacamos a imprensa empenhada em mostrar as mazelas da população escravizada.
[…], Porém, fosse ao caso do “preto tutelado”, de A Redenção ou do “negro algoz” do Correio, ou mesmo do cidadão de “segunda categoria”, de A Província em seu conjunto, e em todos os jornais, o negro, antes de figurar como sujeito, era, antes, no interior dos periódicos, um objetivo do discurso e das práticas, o objetivo de sua situação social e motivações.
Parece-nos, portanto, que a questão negra era entendida, na época, enquanto um problema político e econômico, já que era necessário organizar e disciplinar essa população recém-liberta. Era, também, um problema social, constituído, nesse sentido, suporte para as representações que os brancos faziam sobre si mesmos, no interior de um contexto de embate entre brancos.
Assim, o problema negro, antes de se afirmar enquanto uma situação exterior e neutralmente analisada por segmentos brancos, era, antes, uma questão que dizia respeito e ocupava espaço de significado também para os brancos, que definiam a si próprios, nesse período, no que se refere aos conceitos de nação e de cidadania.
É curioso observar e destacar, comparativamente, os dias atuais com aquele período: as manchetes dos jornais não diferem em nada. A relação marginal que vivemos, as dificuldades de inclusão social, o preconceito deslavado, dentre outras, permite-me dizer que ninguém está empenhado, efetivamente, no crescimento e no estabelecimento de uma nova ordem social.
Grupos minoritários que sempre estiveram dispostos em levar as baixas camadas de um aprimoramento não me parece estarem em logrando êxito, haja visto o resultado íntimo em relação ao todo.
Até mesmo Lázaro Ramos, no livro “Na Minha Pele” traça uma linha que apresenta algumas mazelas e faz uma análise crítica do quanto estamos sendo explorados e enganados em nosso conteúdo.
Movido pelo desejo de viver num mundo em que a pluralidade cultural, racial, étnica e social sejam vistas como um valor positivo, e não uma ameaça, Lázaro Ramos divide com o leitor suas reflexões sobre como ações afirmativas, respeito, gênero, família, libertação, afetividade e discriminação.
Ainda que não seja uma biografia em “Na Minha Pele”, Lázaro compartilha episódios íntimos de sua vida e também suas dúvidas, descobertas e conquistas para discutir temas caros á sociedade contemporânea. É preciso, segundo ele, discutir um Brasil que ainda deve entender a importância do diálogo.
Não se pode abraçar a diferença pela diferença, mas lutar pela aceitação num mundo ainda tão cheio de preconceitos.
Um livro sincero e revelador, que propõe uma mudança de conduta e nos convoca a ser mais vigilantes e atentos ao outro.
Não basta dizer e provar que a evolução social, política, econômica deste país acontece principalmente pela participação do negro. Yeda Pessoa de Castro em “Falares Africanos na Bahia – Um Vocabulário Afro-Brasileiro”, discorre do quanto a nossa língua nagô determinou nossas vozes e falares. Quando entendemos que a principal fonte de desenvolvimento é o acúmulo de experiências materiais e espirituais vivenciadas pelo grupo, e que se materializa pela oralidade, definimos outro contexto da cultura negra. Trata-se, portanto, de leitura fundamental e necessária a quem desejar conhecer o que e como se falam as influências estéticas e fonológicas.
Diante do pouco rigor científico que são tratados os vários meios, os dados linguísticos em geral são considerados irrelevantes em proveito de temas históricos e socio-antropológicos relacionados ao negro no Brasil, razão porque as línguas africanas só eventualmente merecem atenção em reuniões acadêmicas que tratam de assuntos afro-brasileiros. É sempre conveniente lembrar que um dos exemplos mais expressivos, pela sua grandeza e importância histórica, foi o congresso comemorativo dos 100 anos da abolição da escravatura de 1988, que reuniu, em São Paulo, especialistas de várias partes do mundo, inclusive da África.
Nele, não houve um só momento para discutir a questão de línguas africanas, uma omissão que pode chegar às raias do absurdo de se rei ventar a teoria escravista do africano na condição inumana de “escravo coisa” e que só começou a falar “língua de gente”, articuladamente inteligível aos ouvidos humanos, quando entrou em contato com uma das línguas de colonização europeia, em nosso caso, o português!
De sua parte, deve ser notado que entre nós línguas africanas costumam ser chamados de dialetos, com uma conotação depreciativa implícita, enquanto também se acredita que a língua sagrada das religiões afro-brasileiras é o nagô, para muitos, entendido como o iorubá moderno, tal qual é falado na Nigéria.
Evidente que línguas indígenas sempre foram faladas no Brasil. Quanto ás línguas africanas, quase nada sabemos. São raros os documentos linguísticos do tempo da escravidão, e os papéis oficiais relativos ao tráfico, que poderiam dar uma pista em direção aos seus falantes, pouco acrescentam. Esse fato, porém não é motivo de preocupação para pesquisadores, uma vez que tais línguas faladas no Brasil já eram, em sua maioria, faladas ou escritas na África e hoje dispõem de uma vasta bibliografia.
Destaco, também, o livro “Africanos Livres – A abolição do tráfico de escravos no Brasil” de Beatriz G. Mamigonian: poderíamos ter começado a falar sobre o assunto a partir deste livro, tal o seu vigor e capacidade elucidativa dos fatos. Com maestria, a autora elabora uma análise contundente do que foi a abolição dos escravos no Brasil. Destaco o trecho do prefácio de João José Reis: A historiadora discute como indivíduos grandes e pequenos protagonizaram, no Brasil oitocentista, processos históricos amplos de constituição de uma nova ordem mundial sob a hegemonia da Inglaterra.
A participação dos ingleses, por exemplo, antes tratada no âmbito da história política econômica e diplomática – o ambiente de atuação de estadistas, ministros e embaixadores -, desembarca algora no patamar da história social, em cujo terreno, funcionários da Coroa britânica operam em aliança com africanos livres na campanha pela melhoria nas condições de trabalho ou pela emancipação desses africanos.
A lei de 1831 é o eixo narrativo do livro, ao qual se imbricam a análise da experiência dos africanos livres, de sua administração pelo governo e dos efeitos sociais e políticos do contrabando.
O que nos motiva na elaboração e desenvolvimento desta pesquisa é o despertar para a consciência, numa tentativa de enxergar de frente e na esperança de que esta postura possa nos trazer efetivamente novos rumos. Existe o propósito da discussão para um campo mais abrangente onde possamos, minimamente, mostrar fatos ricos da nossa verdade.
É, com autoridade, vos digo que o problema das questões envolvendo o negro é a sua capacidade e competência em tomar e ter ATITUDE, ressaltando que existem confusões e posturas demográficas na interpretação desta atitude e, se não tivermos cuidado, esbarramos no vitimismo desnecessário.
Falo da chamada de atitude filosófica, que é a capacidade de manter sempre um foco questionador diante da realidade, de modo a não aceitar as verdades que o mundo apresenta sem antes fazer uma análise crítica de seu conteúdo e intenções. A atitude filosófica é aquela que estará sempre questionando e procurando o conhecimento daquele que foge do senso comum e do óbvio e busca um posicionamento crítico e pessoal, sem se levar pela opinião alheia.
O negro não há de ter do que se envergonhar, muito menos se submeter a qualquer tipo de submissão orientado pelo motivo que for. Em breves palavras, a conciência desses valores morais e sociais se encarregarão de estabelecer esta nova visão estética e ética – ´trata-se da conciência do próprio valor que, aliado á ética, não é de cor.
A atitude se dá na não aceitação de migalhas, muito menos de privilégio, mas no estado de direito no auto reconhecimento do estar e do fazer, tendo, inclusive, o dicernimento de entender que algumas das ações e atitudes ditas preconceituosas (sociais, econômicas e culturais) estão inerentes a todos os membros da sociedade. É fundamental que tenhamos o discernimento (entre ações) do que venha a ser um gesto racista para não caírmos no campo da intolerância ao contrário.
Valores colocados a disposição do negro nos tempos recentes não são fatores: são direitos vilipendiados. Mesmo reconhecendo tratar-se de uma ação maniqueista, podemos repousar neste fato a possibilidade de um futuro alvissareiro.
Atitude não é ficar o tempo todo querendo que reconheçam e/ou elogiem o que está sendo feito, no contexto social isto tem outro nome. No entanto, quando faço ou desenvolvo algo pleno de consciência, imbuído de verdades sem maniqueismo, estou me fazendo presente sem alvoroço.
Além do que, estamos de um potencial econômico fabuloso, com desejos e demandas de consumo para a população sedenta de oportunidades: ou seja é fundamental acreditar que a comunidade negra tem potencial dentro de qualquer contexto.
Portanto “Sanagê Pele e Osso” é um exercício constante e infindável, se entendermos que esta causa não tem fim. É um fazer diário e sistemático com forte tendência a nos levar ao exaurimento; o processo de desenvolvimento das obras é contínuo e trata-se de um registro potencial e momentâneo.
Tecnicamente para sua materialização, lanço mão de uma pesquisa com o propósito de mostrar o uso dos recursos da pintura contextualizada em outro campo de discussão, pintando com a forma e tirando o processo da zona de conforto da simples representação pictórica. Não se trata de uma assemblage, e não quero que seja, por não trazer os elementos identificados com o processo acumulativo. Surge assim, uma estética com estrutura alveolar, remetendo ás cavernas ósseas.
“Sanagê Pele e Osso” é pintar a massa com a transgressão. Mesmo não tendo o que comemorar, não tem cores em seu passado nem presente, mas acredita que cada um tenha condições de colorir seu futuro com as cores da sua verdade, verdades que serão estabelecidas pela nossa capacidade de ficar fora do abscuranlismo.
Artista Sanagê